quinta-feira, 27 de março de 2008

Escola Base - Caso antigo, mas vale lembrar

A última aula da Escola Base
Cobrança de indenização milionária pode forçar a imprensa
a pagar por seus erros num assassinato social
Os sinos dobraram de novo pela Escola Base. Na primeira quinzena de dezembro, o caso voltou ao noticiário quando o juiz Paulo Aliende Ribeiro, da 5ª Vara da Fazenda Pública, condenou o governo do Estado de São Paulo a pagar uma indenização de cem salários mínimos a dois donos da escola, Icushiro Shimada e sua mulher Maria Aparecida, e um colaborador, Maurício de Alvarenga. A indenização cobre apenas os danos morais, devendo ser feita uma perícia para avaliar os prejuízos materiais das vítimas. O advogado Kalil Abdalla disse que vai recorrer e insistir em cobrar do Estado uma indenização de R$ 2,8 milhões para cada um. Essa é a parte do Estado. Como fica o erro da imprensa? “Eu acho que a imprensa tem a sua parcela de culpa”, disse Shimada no programa Opinião Nacional da TV Cultura de São Paulo em 12/12. No entanto, seu advogado não quer briga com os meios de comunicação. Mas a advogada Maria Elisa Munhol, que representa o casal Saulo e Mara Nunes, outros denunciados no episódio, já está processando as TVs Globo e SBT e os jornais Folha de S.Paulo, Folha da Tarde e Notícias Populares. Ela quer que esses meios de comunicação paguem R$ 3,2 milhões a cada um dos seus clientes (JB, 11/12). Não há notícia, no Brasil, de uma indenização tão alta por danos morais ou materiais. Os juízes preferem arbitrar valores simbólicos que demarcam mas não desestimulam a repetição do erro. “Nos Estados Unidos custa caro indenizar por falsa acusação”, tripudiou a revista Veja ao noticiar (18/12) a indenização paga em acordo extrajudicial pela rede de televisão NBC ao guarda de segurança Richard Jewell, acusado por muitos jornais, rádios e Tvs americanos de ter armado a bomba que explodiu no estádio do Centenário durante a Olimpíada de Atlanta. Jewell foi citado como suspeito pelo FBI e a mídia o tratou como culpado — algumas vezes em longas reportagens onde nem a expressão “segundo fontes do FBI” foi usada como aval da calúnia (O New York Times omitiu de Jewell). O ex-guarda de segurança ameaça processar cada um deles, a menos que, como se antecipou a NBC, façam acordos de indenização. A quantia não foi revelada, mas, como no Brasil quem não sabe inventa, Veja inventou: “... é coisa pra lá de milhão.” No país da impunidade, o caso Escola Base é um dos mais eloqüentes da crônica policial desde que Pedro Álvares Cabral largou aqui criminosos degredados de Portugal. Em 28 de março de 1994, duas mães de alunos, Lúcia Eiko Tanoi e Cléa Parente, queixaram-se na delegacia do bairro do Cambuci de que seus filhos de quatro e cinco anos estavam sendo molestados sexualmente na escola e talvez levados numa Kombi para orgias num motel, onde seriam fotografados e filmados. O delegado Edélcio Lemos e a maior parte da mídia encamparam a denúncia como fato provado, mas ao final do inquérito os acusados foram declarados inocentes. Eles sofreram um assassinato social: perderam os empregos, a paz e isolaram-se da comunidade. Registre-se que a denúncia das mães era notícia de primeira página
O pecado original foi da polícia, mas é cristalino que a mídia espetacularizou a denúncia e a seguir assumiu as acusações como verdade provada e fechou os olhos para o linchamento dos acusados. Registre-se que a denúncia das mães era notícia de primeira página. Qualquer pai com filho na escola, em qualquer escola, possivelmente sentiu um frio na espinha ao saber da suspeita de pornografia com crianças. Mas era só notícia, não linchamento. Já nos primeiros dias da cobertura deveria ter sido aceso o sinal amarelo diante do desequilíbrio do delegado Edélcio Lemos. Ele assegurava, com convicção de vidente, a culpa dos acusados. Não parecia um investigador, mas uma testemunha ocular. Sua única “prova”, além do depoimento tatibitate das crianças, devidamente pajeadas pelas mães, era um telex do Instituto Médico Legal sugerindo violação sexual de um menino. Mais tarde, o laudo do IML foi dúbio e incapaz de se contrapor à evidência de que o garoto sofria de assaduras crônicas. “Ciente da fragilidade das provas que tinha em mãos, agiu [o delegado] com culpa, nas modalidades de imprudência e imperícia”, disse o juiz Paulo Ribeiro na sentença (JB, 11/12). Prudência e perícia se afastaram também do noticiário. “Perua escolar carregava crianças para orgia”, estampou a Folha da Tarde. Notícias Populares, um pasquim indigno da liberdade de imprensa, afirmava: “Kombi era motel na escolinha do sexo”. A orgia das invencionices alterava os hormônios da imprensa de elite. “Escola de horrores”, sentenciou a revista Veja. A cobertura escrachada não preservou ninguém, nem mesmo as crianças, reconhecíveis pela identificação dos pais e atazanadas em noticiários da TV. Em pleno jornal do meio-dia, emissoras pediam a um menino de quatro anos que contasse detalhes escabrosos do suposto molestamento sexual. “A tia passou a mão em você?”, sugeria a repórter da Globo à criança inocente que brincava com o microfone. A TV Cultura educava seus telespectadores com um jornalismo espúrio, conforme o diálogo do repórter com um garotinho, reproduzido pelo jornalista Alex Ribeiro no livro Caso Escola Base - Os abusos da imprensa: “— Esta mulher, ela deitava em cima de você? — Deitava. — O que ela fazia, o que ela queria? Diante da relutância do garoto, o jornalista sugeriu a resposta: — Te beijar a boca? O garoto respondeu com um aceno de cabeça...” Os erros da polícia e da mídia na Escola Base nada tiveram de originais. Apenas reiteraram a versão reforçada de uma sucessão de disparates profissionais, truculência, prepotência, desrespeito aos direitos humanos a que estão acostumados a polícia e a imprensa. E tome autocrítica: nunca a imprensa se penitenciou tanto de um erro, mas o fez genericamente. Se um erro grave foi cometido numa reportagem, deve ser feita uma reportagem grave sobre o erro. Ninguém fez isso
A autocrítica no jornalismo só é aceitável com jornalismo: cabe ao meio de comunicação reconhecer que errou (mentiu? inventou?) ao noticiar determinada fantasia ou barbaridade. Se um erro grave foi cometido numa reportagem, deve ser feita uma reportagem grave sobre o erro. Ninguém fez isso. A autocrítica genérica, ao debitar a trapalhada na costa larga “da imprensa”, serve para que tudo continue como sempre foi: erra-se e pede-se desculpa para ter direito a outro erro. A principal causa da tragédia foi o barbarismo policial e a conivência da mídia com esse barbarismo. Uma é o espelho canibal da outra. A polícia não investiga, condena e divulga. A imprensa divulga, condena e não investiga. Ao final, as vítimas se amontoam na próprio infortúnio, a polícia nunca é responsabilizada e a imprensa se defende com a alegação invariável que apenas publicou o que lhe disseram. Desde o número 1 deste boletim, lançado em março de 1995, a autocrítica da mídia no Caso Escola Base tem sido tratada como lágrimas de crocodilo: “O que a imprensa aprendeu com o caso da Escola Base — aquele em que, escudada num delegado afoito, crucificou, achincalhou inocentes e depois fez uma fugaz autocrítica ? Aparentemente, nada. O efeito Escola Base é nulo, por que é o método de trabalho das redações que forja esses casos, e de pouco adianta a má consciência posterior dos jornalistas. Como não mudaram os métodos, os escândalos com a reputação alheia continuam. Uma autocrítica profícua produziria mudanças na aceitação — às vezes, provocação — das levianas deduções da polícia. A imprensa joga fichas viciadas na roleta das investigações policiais, e ganha notícias que um questionamento mínimo deixaria inéditas. A imprensa não duvida da suposta eficiência com que, uma hora depois do crime, delegados saciam repórteres com teorias de Sherlock Holmes. Qualquer barbaridade é publicada com o habeas corpus ‘ Segundo a polícia...’ ”. A autocrítica foi tão inócua que dentro do Caso Escola Base a imprensa logo se esqueceu do erro e forjou outro — e desta vez dispensou a ajuda da polícia e mentiu sozinha. O delegado Lemos já estava afastado e em seu lugar assumira Jorge Carrasco quando, em abril, foi preso o americano Richard Pedicini, sob a suspeita de ceder o casarão em que morava, no bairro da Aclimação, para as “orgias” com as crianças. Levadas para reconhecer camas redondas e espelhos no teto, as crianças não reconheceram nada. Os policiais concordaram em que não houvera a identificação do local e despistaram os repórteres. No dia seguinte, abastecidos em off-de-record pelo advogado das mães, Artur Proppmair, alguns jornais detonaram os torpedos habituais: “Alunos da Escola Base reconhecem a casa do americano”, disse o Estadão; “Criança liga americano a abuso de escola”, disse a Folha. Note-se que em plena temporada de autocrítica a recidiva foi tão grave quanto a epidemia original. “No dia seguinte, até os delegados estavam indignados com aquela história”, escreveu o jornalista Alex Ribeiro.
Boletim 12, Novembro-Dezembro de 1996 © Instituto Gutenberg

Nenhum comentário: