segunda-feira, 24 de maio de 2010

Ocultação de cadáver - a missão.

Por: Roberto de Castro Neves - Imagem Empresarial

Importante executivo de uma poderosa empresa é encontrado morto no apartamento onde morava sozinho. Como tinha tirado uns dias de férias, ninguém deu por sua falta na empresa. A família, por sua vez, pensou que estivesse em uma daquelas suas viagens de negócio. Foi uma vizinha de andar que sentiu um cheiro estranho. Avisou à polícia e os homens realizaram uma operação de guerra. Com a informação de que o ocupante do apartamento morava sozinho e que ninguém sabia onde encontrar a família, o chefe da operação mandou arrombar a porta já imaginando o que encontraria. No quarto, sobre a cama, conforme registrou um policial, “encontrou-se o corpo de uma pessoa do sexo masculino em adiantado estado de decomposição”. Deitado de bruços com as mãos amarradas na cabeceira da cama e o corpo com inúmeros ferimentos produzidos por instrumento – na definição policial - “perfuro-cortante”. “Coisa de homossexual” – logo sentenciou o delegado. E foi esse delegado que, do local do crime, ligou para a empresa para falar diretamente com o presidente - e só com ele -, assunto, segundo ele, delegado, do interesse dele, o presidente. Foi direto: “Senhor presidente, o indivíduo encontrado morto é diretor de sua empresa conforme documentos encontrados nos aposentos do mesmo, senhor presidente, onde me encontro agora. Assassinato brutal, senhor presidente, em trinta anos de polícia poucas vezes vi coisa assim, o corpo tá que tá, senhor presidente, por baixo, foram mais de cinqüenta facadas, senhor presidente, o pessoal da funerária vai ter que fazer milagre pra que o defunto possa ser exposto em caixão aberto, senhor presidente. Por que fiz questão de falar diretamente com o senhor? Porque, senhor presidente, sabe como é, toda a imprensa está aqui na portaria do prédio, os urubus já sentiram o cheiro da carniça, o senhor sabe como é essa gente, e a vítima é diretor de sua empresa, por sinal, uma empresa conceituadíssima no mercado, então acho que não é do interesse dos senhores que venha à baila uma situação dessas, falando português claro, coisa de homossexual, senhor presidente. E não preciso dizer para o senhor como essa nossa imprensa gosta de escândalos, não é mesmo? Portanto preciso de sua orientação de como agir, senhor presidente. Quando me encontrar com aquelas feras lá embaixo, digo o quê, senhor presidente?... Estou às suas ordens, é dever da polícia cooperar...” E arrematou afirmando que, se nada fosse feito, seria grande o risco de o diretor aparecer pelado em cima da cama no Jornal Nacional. E o nome da empresa com todas as letras, logotipo e tudo mais como pano de fundo. “Pegaria muito mal para a imagem da empresa, não é mesmo, senhor presidente? O problema está em suas mãos, senhor presidente. Estou às suas ordens “.

Que maçada! O presidente não sabia o que dizer. A única coisa que lhe ocorreu foi pedir ao delegado dez minutos para voltar a ele alegando que precisava ouvir o estafe, etc. O delegado concordou sem antes avisar que não tinha condições de segurar, segundo ele, “os urubus” por mais do que os dez minutos solicitados. Depois disso, seria como Deus quisesse, Jornal Nacional e tudo mais. “A sua empresa tem ações na bolsa, não é mesmo?” – perguntou como quem não quer nada antes de desligar.

A primeira pessoa que o presidente chamou foi diretor de RH. Este, após ouvir o relato, ponderou: “Infelizmente, só posso cuidar de avisar à família, da comunicação interna e do enterro. O resto está fora da esfera de RH. Quanto ao comunicado interno, recomendo que seja o mais discreto possível. Como todo mundo está careca de saber que o Tavares era via... digo, homossexual, o boca-a-boca vai se encarregar da reportagem”. “O que dizer ao delegado? Presidente, acho que isto é um problema para os advogados”.

O segundo a ser chamado foi o diretor do Departamento Jurídico. Este foi também logo tirando o corpo fora. Segundo ele, se o assassinato aconteceu fora da empresa, fora do horário do expediente e nas férias do funcionário, não haveria relação entre o crime e a empresa. “Elementar, meu presidente. Data vênia, este delegado está querendo aparecer”. “Voltar a ligação? Melhor não. Quê Jornal Nacional, quê nada, meu presidente! Esse cara está blefando. O que ele quer é levar algum dinheiro. Não caia nessa não. Subornar policial é crime, presidente. E cuidado com o que fala no telefone, presidente. Minha sugestão, se me permite, é que se tenha uma estratégia para controlar a imprensa. Afinal pra quê serve a nossa assessoria de imprensa, senhor presidente?”.

Chamado com urgência à sala da presidência, o assessor de imprensa logo sacou que boa coisa não era. Por sua experiência, sabia que essas convocações – “comparecer à sala da presidência”, “urgente”, etc – eram pré-anúncios de missões impossíveis. Mensagem a Garcia, na certa. Não deu outra. O presidente, sem entrar em muitos detalhes, resumiu a história e a missão encomendada: um diretor da empresa fora assassinado e era importante que nada sobre o assunto saísse na imprensa. “Ocultação de cadáver”, em bom português, pensou o assessor sem nada comentar. O presidente levou-o até a porta, e despediu-se olhando firme no olho do assessor: “Faça o que for necessário para que sua missão tenha êxito. Você tem carta-branca. Conto com você”.

Essa história pode ter vários finais. Em todos eles, ignorar ou não o delegado é irrelevante. Os desdobramentos se diferenciam na repercussão do crime na mídia. Em um dos finais, nada aparece sobre o assunto no Jornal Nacional (embora toda a cúpula da empresa, apesar das generosas doses de scotch, tenha assistido ao programa com o coração na boca); no dia seguinte, apenas um jornal de grande circulação, em uma matéria mínima, mencionou o assassinato, sem citar a empresa nominalmente. Somente leu a matéria quem já sabia do ocorrido. Na verdade, o pouco destaque dado ao assunto decepcionou o público interno. Alguns entenderam que era um sinal de desprestígio da empresa. O presidente ligou para o assessor de imprensa e fez-lhe um bruto de um elogio. Há muito a auto-estima do profissional não recebia tamanho reforço.

Em um outro final, vários jornais noticiaram o crime, dando nome e sobrenome aos bois, vítima e empresa. Em um jornal popular - que circulou de mão em mão dentro da empresa - o corpo desnudo e ensangüentado da vítima aparecia sobre a cama. Para variar, a manchete era escandalosa. Naquele dia, a empresa parou. Não deu conta em responder aos telefonemas de todas as origens – familiares de funcionários, repórteres, clientes, fornecedores, ong’s, curiosos. Nos corredores, na cantina, na intranet, só se falava no assunto: especulações sobre o crime, histórias sobre a vida da vítima, piadinhas politicamente incorretas. O assessor de imprensa, cuja reputação profissional já andava mal das pernas, foi demitido. A “carta branca” virou “bilhete azul”.

Os desdobramentos pouco importam. O que importa são os ensinamentos. O jogo-de-empurra. O mico pulando de ombro em ombro. Os aconselhamentos amadores e irresponsáveis. A desintegração funcional na hora da crise. O comportamento do público interno, a natureza humana a flor da pele: sádico, cruel, literalmente querendo ver sangue. Essas e outras. E como pano de fundo - embaralhando corações e mentes, nivelando por baixo as decisões, desligando o bom-senso - o preconceito.

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